Edição nº 586

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de dezembro de 2013 a 15 de dezembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 586

Intensificação de movimento pendular agrava desarranjo espacial na macrometrópole de SP

Pesquisa aponta que três milhões de pessoas se deslocam regularmente para trabalhar e estudar em quatro regiões metropolitanas paulistas

O desarranjo entre os lugares de residência, as atividades de trabalho e de estudo tem determinado nos últimos anos um aumento expressivo no fenômeno denominado pelos demógrafos de mobilidade pendular. A auxiliar de limpeza Tatiane de Oliveira Mattos, 27 anos, e o profissional de tecnologia de informação (TI) Giovani Senno, 32 anos, integram este contingente, embora caminhem em sentidos opostos.

Tatiane deixa os dois filhos com o marido e desloca-se, diariamente, de sua residência em Hortolândia, no interior de São Paulo, para a vizinha Campinas, onde conseguiu há quatro meses seu primeiro emprego numa empresa de prestação de serviços na área de limpeza e manutenção. São cerca de 30 quilômetros de viagem “tranquila, quando o trânsito ajuda”.

Giovani faz o trajeto inverso. Ele atua numa multinacional instalada no parque industrial de Hortolândia, município de 200 mil habitantes da microrregião de Campinas. Assim como Tatiane, o profissional de TI já se habituou à viagem diária, feita “numa boa, com ônibus fretado cedido pela empresa”.

A intensidade cada vez maior da mobilidade pendular no Estado de São Paulo é uma das principais revelações das investigações conduzidas por pesquisadores do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. Estimativas dão conta de que três milhões de pessoas em idade ativa (acima dos 15 anos) movimentam-se regularmente para trabalhar e estudar entre os 173 municípios paulistas que compõem quatro regiões metropolitanas – Baixada Santista, Campinas, Litoral Norte, Vale do Paraíba e São Paulo. O número toma como referência o Censo Demográfico de 2010, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Enquanto a média do crescimento populacional destas regiões, entre 2000 e 2010, manteve-se em torno de 1% ao ano, os movimentos pendulares subiram nove vezes além. O deslocamento de pessoas para trabalho ou estudo sofreu um incremento de 76% nos anos 2000, período de emergência das regiões metropolitanas. Para o demógrafo José Marcos Pinto da Cunha, pesquisador do Nepo e um dos autores do estudo, é cada vez mais comum este deslocamento das pessoas entre duas cidades que, não necessariamente, precisa ser diário, mas regular.

“As experiências e histórias dos processos de ocupações das regiões metropolitanas mostram que não há muita preocupação no sentido de tornar mais eficaz a mobilidade da população. O grande desafio atual é reduzir essa mobilidade das pessoas e tentar fazer programas para aproximá-las das suas atividades, seja de trabalho ou estudo. E não é isso que temos visto infelizmente”, avalia. 

O demógrafo da Unicamp afirma que o fenômeno da pendularidade espelha processos de ocupações desiguais do espaço. Os lugares onde as pessoas moram dependem muito mais do nível aquisitivo e dos interesses do mercado imobiliário do que propriamente das ações governamentais, critica José Marcos da Cunha, que atua como docente do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

“A pendularidade reflete a expansão das atividades econômicas, envolvendo quem é capaz de desenvolver tais atividades. O Estado, em qualquer dos níveis de atuação, tem feito muito pouco no sentido de romper essa apropriação desigual do espaço urbano, que temos observado desde sempre. Tem um passivo muito grande. Ele pode ser solucionado, mas não é de fácil solução”, expõe.

Hortolândia, situada às margens da Rodovia Anhanguera (SP 330), é um exemplo para a compreensão da intensidade do fenômeno, que envolve, no plano externo, as regiões metropolitanas e, no plano interno, as cidades de referência dos territórios metropolitanos. Cerca de 40% da população do munícipio é pendular, de acordo com o pesquisador da Unicamp.

“Essa mobilidade é muito mais intensa no nível interno das regiões metropolitanas. Hortolândia tem um cruzamento ‘interessante’ com Campinas. Enquanto os profissionais mais qualificados que moram em Campinas, Vinhedo ou Valinhos estão indo para estas grandes empresas instaladas em Hortolândia, a população de baixa renda de lá está vindo para Campinas trabalhar na cidade”, exemplifica.

Dos três milhões de pessoas que se deslocaram em 2010, cerca de 80% o fizeram nas cidades pertencentes às mesmas regiões metropolitanas, ou seja, no nível interno. Em 2000, este índice era ainda maior, chegando a 85,5% do total de deslocamentos. Mesmo sendo em volume inferior, a pendularidade no nível externo, entre cidades de diferentes regiões metropolitanas, apresentou crescimento de mais de 131%, entre 2000 e 2010, passando de 323 mil pessoas para 539 mil.


O caso do "treme-treme"

O pesquisador do Nepo aponta que o desafio está no sentido de o poder público não somente regular a ocupação do espaço urbano, mas intervir na forma de ocupação. “Por que surge Hortolândia, Monte Mor e Sumaré? Porque Campinas não tem, há muito tempo, uma política de loteamentos populares. Podem dizer que isso existe na região do Campo Grande, mas boa parte são ocupações. Não é para menos que o município de Campinas é um dos campeões de ocupações no Brasil. Se o poder público não dá direito à cidade, as pessoas ocupam”, considera.

José Marcos da Cunha lembra o caso dos edifícios São Vito e Mercúrio, residenciais de grande porte instalados no centro da capital paulista. Nos últimos anos os prédios foram desapropriados e demolidos pela Prefeitura de São Paulo. Localizados na Avenida do Estado, eles possuíam 27 andares cada um e, segundo o docente, uma potencialidade enorme para a moradia popular. O São Vito, conhecido como “Treme-Treme”, foi um dos edifícios mais suntuosos da cidade na década de 1950.

“Estes residenciais estavam localizados em frente ao Mercado Municipal de São Paulo. Havia um plano de ocupá-los com a população de baixa renda, ou seja, um plano ideal, porque a localização é excelente para as pessoas que trabalham na região. Imagina o que significaria aquilo para população de baixa renda que sai das áreas da periferia e leva mais de duas horas de ônibus e metrô para chegar ao trabalho? Seria um pingo no oceano, mas já era uma alternativa. Viabilizar a ocupação de áreas centrais para os mais pobres é um grande passo. O poder público tem condições de fazer isso”, sustenta o estudioso.

O Estatuto da Cidade (lei 10.257), em sua opinião, está entre os instrumentos de regulação e intervenção do espaço urbano mais modernos do mundo. “Este instrumento permite que o poder público desaproprie e declare áreas de interesses sociais. O problema é que, no legislativo e no executivo, os interesses imobiliários são fortíssimos. O poder público poderia, portanto, usar estes prédios, mas eles podem virar um shopping ou um estacionamento. O interesse imobiliário prevaleceu”, lamenta. 

 

Macrometrópole 

O pesquisador do Nepo informa que o objetivo do estudo desenvolvido na Unicamp é diagnosticar as tendências e características da mobilidade pendular nas quatro regiões metropolitanas de São Paulo. Foram utilizadas informações disponíveis nos Censos de 2000 a 2010 produzidos pelo IBGE.

As pesquisas são resultados de uma parceria com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano SA (Emplasa), órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Metropolitano do Estado de São Paulo. Também participaram do trabalho, além de José Marcos, o economista e pesquisador do Nepo Sergio Stoco; o geógrafo Ednelson Mariano Dota, docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas e doutorando da Unicamp; e as gestoras Rovena Negreiros e Zoraide Amarante Itapura de Miranda, da Emplasa.

“O diagnóstico certamente contribuirá para avaliar o processo de interação e complementariedade socioespacial que se desenvolvem entre as aglomerações urbanas. O estudo desse fenômeno pode contribuir para o diagnóstico do processo de estruturação desses espaços e, sobretudo, para mitigar deficiências existentes em termos de política habitacional, de transportes, de saúde, educação”, justifica o docente da Unicamp.

Ele acrescenta que a partir do processo de integração e complementaridade destas regiões metropolitanas, a Emplasa passou a trabalhar com uma nova categoria espacial, denominada pelo órgão como macrometrópole paulista. Formada por estas quatro regiões metropolitanas (Baixada Santista, Campinas, Litoral Norte, Vale do Paraíba e São Paulo), a macrometrópole constitui-se numa das maiores aglomerações urbanas do país.

A emergência e o reconhecimento desta nova categoria espacial é relevante para a compreensão de novas tendências que possuem implicações socioespaciais e demográficas importantes, avalia José Marcos da Cunha. “Apesar de não perderem suas características, funções e especificidades, as regiões metropolitanas estão cada vez mais integradas, dependentes e complementares em suas funções, inclusive do ponto de vista demográfico. Todos estes aspectos repercutem também numa mobilidade da população, seja residencial, de caráter definitivo, ou pendular”, confirma.

Ainda de acordo com o demógrafo, a intensidade dos deslocamentos regulares nesta macrometrópole transformou as grandes autoestradas da região – como as rodovias dos Bandeirantes (SP 348), Ayrton Senna (SP 70), Castelo Branco (SP 280), dos Imigrantes (SP 160) e Dom Pedro I (SP 65) – em verdadeiras ‘avenidas’, em razão do grande fluxo de pessoas, bens e serviços.

“Quando a Castelo Branco foi inaugurada, era uma autopista fantástica. E o Alphaville de São Paulo estava na sua margem. Agora, a Castelo Branco é uma grande avenida, você não consegue andar em determinados horários. E o Alphaville já começa a trazer escritórios para perto dele; e muita gente já vive de helicóptero para cima e para baixo”, especifica.

A articulação e integração são tão intensas entre as cidades da macrometrópole paulista que seus principais problemas só podem ser resolvidos de maneira integrada, sugere o pesquisador do Nepo. “O metropolitano não existe como nível de organização e de execução. As regiões metropolitanas ficam meio ‘capengas’ neste sentido. Portanto, a Emplasa tem um papel interessante no sentido de mostrar que o recorte metropolitano é importante para cada um dos municípios. Os prefeitos tendem a se concentrar muito nas questões administrativas, esquecendo que os problemas dos seus municípios também estão relacionados à região como um todo.”

Conforme dados do IBGE de 2009 e 2010, vivem na macrometrópole paulista mais de 30 milhões de pessoas, o equivalente a 70% da população do Estado de São Paulo. A região é responsável por mais de 80% do Produto Interno Bruto (PIB) paulista e 28% do PIB brasileiro. A disparidade também é acentuada: quase três milhões de pessoas residem em condições precárias de moradia, como favelas, ocupações e áreas de risco.

Este grande território urbano ocupa 20% da superfície do Estado de São Paulo, concentrando municípios situados em um raio aproximado de 200 quilômetros a partir da capital. Uma condicionante para a sua formação está na desconcentração industrial da região metropolitana de São Paulo, o principal polo industrial do país. Este processo iniciou-se a partir da década de 1970. Conforme os estudos do Nepo, o fenômeno se dá também pela reestruturação produtiva pós 1990, que substitui a concentração dos empregos industriais pela maior participação do setor de serviços. 

 

Futuro 

As investigações sobre a pendularidade na macrometrópole paulista serão incrementadas, no futuro, com resultados de outro estudo em andamento produzido pelo Nepo. Trata-se de uma análise sociodemográfica a fim de mapear o perfil da população que está inserida neste fenômeno.

Não é difícil encontrar pessoas que passam boa parte do seu dia a dia em deslocamentos de casa para o trabalho ou estudo. Os relatos da auxiliar de limpeza Tatiane Mattos e do profissional de TI Giovani Senno, demonstram que o fenômeno, cada vez mais intenso na atualidade, é, de certo modo, aceito como uma condição natural pela população.

“Eu moro em Hortolândia há seis anos. Antes, estava em Sumaré, mas aí meus pais se mudaram, eu me casei e fui para Hortolândia também. Para vir ao trabalho, levo uns 35 minutos, para voltar demoro mais, uns 50 minutos. A viagem não é cansativa, já me acostumei. Meus filhos, um de oito anos e outro de um ano e oito meses, ficam com o meu esposo”, descreve Tatiane.

Giovani Senno conta que morava com os pais no bairro Jardim Nova Europa, na região sul de Campinas. “Acabei me mudando recentemente para a região do Swift. Comprei um apartamento há três anos e, quando terminei de mobiliá-lo, me transferi para lá. A companhia fornece transporte fretado para toda a região e em muitos horários, então, isso facilita bastante”, justifica.

Colega de Tatiane, a auxiliar de limpeza Roseane da Silva, 37 anos, também não se incomoda com o percurso diário de Sumaré a Campinas. “Não é tão complicado vir para Campinas, têm o fretado e um ônibus circular direto, apesar de ser de hora em hora. Acaba sendo ruim por causa disso, mas não me incomoda não. Eu sempre trabalhei em Campinas, sempre busquei as oportunidades aqui”, revela.

Karina de Oliveira Souza, 27 anos, mora e trabalha na mesma cidade, em Campinas. Ela, porém, leva mais tempo para voltar para a sua residência do que as colegas Tatiane e Roseane. “Eu moro do outro lado da cidade, no Jardim Bassoli, para frente do Campo Grande. Se tivesse um emprego mais perto de casa seria melhor para poder ficar mais tempo com meus filhos. Demoro uma hora para voltar para casa, mas não acho ruim não”, conforma-se a jovem que atua na empresa prestadora de serviços no distrito de Barão Geraldo, região norte de Campinas.

 

Substituição de gerações 

Uma das explicações para a explosão dos movimentos pendulares, apesar do baixo índice de crescimento populacional, é o que o demógrafo José Marcos da Cunha chama de substituição de gerações.  Além disso, o fenômeno adquire autonomia em relação ao crescimento demográfico em razão de mudanças nas formas de uso e ocupação do solo urbano, seja em termos demográficos ou mesmo econômico.

“A questão da substituição de gerações é interessante para entender a intensidade dos movimentos pendulares. O exemplo é uma família formada pelo marido, a mulher e dois filhos de 15 e 16 anos. Esses filhos vão ter que buscar algum lugar para morar em breve. Mesmo que a população não cresça tanto em intensidade, eles vão sair das casas dos pais. Ao deixarem as casas dos pais, eles dificilmente vão ter condições de ficar no mesmo lugar, no mesmo bairro, a não ser que sejam muito ricos. Portanto, este processo de substituição de gerações acaba modificando a cidade”, ilustra.

Há também que se considerar o fator da urbanização dispersa, conforme explica o estudioso. “A urbanização dispersa tem impacto decisivo sobre essa mobilidade. Há uma tendência dos condomínios fechados para a população de alta renda. Alguns estudiosos chamam isso de ‘novas periferias’. É o caso de Vinhedo, que está numa posição privilegiada por estar perto de Campinas e de São Paulo. Muita gente escolhe morar ali, eles têm essa possibilidade... Há um conjunto de elementos que influenciam novas tendências de urbanização, como custo de vida, segurança, qualidade de vida, entre outros.”

 

Publicação

CUNHA, J.M.P.; STOCO, S.; DOTA, E.M.; NEGREIROS, R.M.C.; MIRANDA, Z.A.I. A mobilidade pendular na macrometrópole paulista: diferenciação e complementariedade socioespacial. Cadernos Metrópole, 15 (30):, 2013.